Vestida para lutar ela sai, ainda sem amanhecer. É guerreira.Quase escrava. É Maria, seja lá quem for.
Café requentado, um pedaço de pão dormido, vale escondido no sutiã.Não importa a cor ou quantos filhos deixou.
Carrega remorso, dor e preocupação.Mas é assim que tem que ser.Lá se vai a Maria, sob chuva de cobrir canela, calçaa enrolada, tamanco na mão.
E ela chacoalha na terceira condução, sem o sono que ainda tinha de dormir.Balança, segura a cabeça, Maria.
Na bolsa, além do trocado miúdo, um batom e um perfume barato.Um cigarro amassado e um retrato.
Balança, Maria.Passa as horas de pé, na mesma lida de todos os dias.
São mais de seis quando toma o banho para ir-se, de vez. O cheiro de rosas se perde, no mesmo ônibus modorrento que a devolve pela metade, naquilo que chama de casa.
Cabeça raspando o teto torto feito rede pensa, rangendo sob o peso d’água e da falta de condições.Mas a alma está refeita e Maria caminha mais meia hora assim, pernas doendo.Nos lábios, a velha canção.Ah, Maria...Ainda haveria de penar mais um bocado, entre tanque e baldes carregados.
Altas horas, seu homem que chega, cheirando a fumaça de cigarro de retalho e cachaça, como não? Nunca recebe cartas, apenas receitas e recados, pendurados numa geladeira que não é sua. O patrão quer pernil assado. A menina pede sempre macarrão. Também não existe dia especial, só certezas. Do trabalho pesado, das contas atrasadas, da fome adiada. Dos dentes perdidos, das pernas inchadas.Dos remédios que ficam só nas receitas. Cansaço ela esquece, e serve ao amado um prato requentado de pura afeição.
Maria, guerreira, rainha.Rebola, Maria, rebola, que vem mais um carnaval. E se banha, caneca na água fria do tambor enferrujado.Vaidosa, se perfuma, se enfeita. Passa nos lábios o toco do batom que cheira a parafina.
Diante do caco do espelho surge Maria, princesa sem tostão.E pede amor, de homem e de mulher. No gosto, no dorso. No lombo.Com cheiro de corpo e de gente.
Carnes quentes na esteira aberta no chão. Maria mãe de quatro filhos de alguns pais. Maria do tanque e do fogão. Do samba, do muro da igreja.Dos pés repletos de rachaduras, mapas da terra batida escaldante.
De muitos calos nas mãos, cabeça cheia de idéias.Maria da cor do pecado, do riso fácil e incompleto.
Do bolo de macaxeira, da banana frita. Do feijão apetitoso, dos “causos” interessantes.
Da novena incessante, (reza, reza, Maria!) Santa feiticeira.
É a Maria faceira. Que nada pede para ser feliz.
Não entende os mistérios da vida, e dela é senhora, é inteira. Sorria, sorria, amada Maria.
Que a gente vê e não enxerga. Sabe quem é, mas não conhece.E torce para ela chegar, logo que amanhece.
Dona da nossa paz, mão que alimenta e faz dormir.
Todo dia, todo dia é dia da Maria Qualquer Coisa.
Postado por Vera Cascaes às 21:40 1 comentários
Aldinair disse...
Descobri voce no Magazine,do Jornal Liberal,gosto dos seus textos,esse em especial, pois fala de todas as Marias de uma maneira linda e suave.Abraços.
28 de Maio de 2008 11:10
Etiquetas: doméstica., maria, pobre, triste
Imagem: Lavadeira. Pintura bitmap de João Werner
quinta-feira, 11 de junho de 2009
Maria Qualquer Coisa
Postado por Vera Cascaes às 17:22
Marcadores: doméstica., maria, pobre, triste
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