domingo, 27 de janeiro de 2008

Como Florbela


De amores, mentiras e outras tragédias.
Senta-se sobre as pernas cruzadas, como se buda fosse e olha a janela escancarada. A folha permanece em branco, avisa o monitor igualmente sem cor.
Desatina-se.Queria que lhe baixasse um espírito desesperado, inquieto e apaixonado.
Que Florbela Espanca lhe soprasse nos ouvidos versos enlouquecidos, que contasse a sua versão daquela morte, comprimidos não têm graça; um mergulho suicida no mar revolto teria um pouco mais de glamour , se é que na morte se pode pensar nisso.
Florbela. Sua inspiração recorrente, a mais notável das bipolares, aquela que vivia afirmando-se e negando-se a cada linha. Um Dom Juan de saias, um narciso inveterado que nunca encontrou assunto que não nascesse no próprio umbigo e não fosse embriagante.
Ela jamais seria a sombra de Florbela. No máximo, um plágio num blog qualquer, que essas
coisas de Internet tiram o charme de qualquer poeta, não importa quanto fosse impactante fundo musical e ilustração. Espanca nunca precisou de efeitos especiais.Era carne e sangue, moderna, lírica e sensual.
Quem sabe sentisse melhor as palavras num caderno, escritas a pena, borradas pelas lágrimas paridas a fórceps, às custas da mais triste das músicas atormentando-lhe os neurônios.Isso não é inspiração, mulher!, recriminava-se, piorando as coisas.
Não se faz boa poesia na alegria, repetia, da mesma forma que paixão acaba em solidão e amor, em dor. Não existe romance sem sofrimento e pronto!
Um longo texto alinhavando as torturas do casamento...Logo ela, que se casara quatro vezes, que ironia. Onde estavam as pílulas? O anti-depressivo que a tornaria um pouco menos absurda, mais próxima da normalidade e que a deixaria sem cor e sem graça, menos diferente, o tanto quanto fosse suportável.O sucesso pertence aos iguais.
Precisava dormir ou enlouqueceria mais ainda com aquela tela vazia e minutos passando, ditando a sentença que a faria pular do trampolim: não há mais tempo!
Prazos, quem inventou os prazos, a física quântica e outras ficções a respeito do tempo? Alguém que não amava, que nunca vivera essa paixão de dar nó nas tripas, essa vontade de gritar me bate, mas me ama, me ama. Me deixa, mas antes, me arrasta e me mostra como vou morrer de saudade, como vou esquecer de mim sem jamais esquecer da tua pele, das tuas mãos me apertando, do vazio que sinto onde deverias morar, nesse amor que é lago, lagoa onde nadas e mergulhas feito Posseidon.
Decididamente, ela não conseguiria escrever mais nada, perderia o emprego e o vício!
Os prazos. O que faço com eles se não consigo pensar em mais nada e tua ausência me sufoca?
Bem feito! Foram tantos conselhos, vai para a editoria de moda é muito mais fácil, ninguém entende nada mesmo e as especialistas, ah, algumas andam com aquele negócio mofado que ainda chamam de tailleur, com florzinha na lapela e modernidade regada a naftalina. Mas não, tinha que escolher o caderno literário com uma página in-tei-ra só para ela. Dez mil toques. Onde está o trampolim?
“Eu quero amar, amar perdidamente !Amar só por amar: Aqui ... além...Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente ...Amar ! Amar! E não amar ninguém !(...)
Quem disser que se pode amar alguémDurante a vida inteira é porque mente!”*
Quase sente o clima de Matosinhos, por onde andou a poeta, até aquele aniversário- o derradeiro- em 1930. Quantas vezes já havia programado essa viagem além mar, onde haveria de ver as terras e coisas de Pessoa, de Florbela - sempre ela- do Alentejo de outros amores, da Caparica cada vez mais distante...
Era hora de sair do computador buscar um pouco de ar, de verdade.De nem lembrar quantas vezes se indignou com quem pensa que “navegar é preciso” como se necessário o fosse...
Precisão. Ah, a matéria que não sai, a redação está quase vazia!
Quem sabe pudesse esquecer tudo e beijar a terrinha como um João Paulo nada santo, um afago, um sorriso e... cheguei!, Se navegar é cartesiano, viver...ah viver é comigo!
Sem pílulas nem mar para mergulhar, só resta a vida real. Agora só resta Portugal.

* Soneto de Florbela Espanca (Texto : Vera Cascaes)