segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Descomplique-se


A falta de qualidade de vida é tema recorrente em todo lugar. Ninguém tem tempo para nada, é a sujeira, o trânsito, muito trabalho (sempre) e mais compromissos do que se pode atender. Alguns ainda arrastam relações pessoais – familiares ou profissionais – tensas; e o lazer... Bem, isso é coisa de quem não tem o que fazer, criticam. Enquanto isso, cada vez mais pessoas procuram descomplicar a vida, para viver mais – e melhor. Se você acha que tem a ver com falta de dinheiro ou mediocridade, é melhor rever seus conceitos. Simplicidade é uma forma de encarar a vida, quase uma ideologia. Pessoas simples são mais felizes, não por exigir menos, mas por eliminar o que atrapalha.
Parece fácil, mas não é. Muitos acham que ser simples é ser modesto, simplório; e bem sucedidos parecem muito, muito ocupados. Na verdade competência é não se ocupar mais que o necessário. Não “ter tempo” virou desculpa para tudo; auto-indulgência para não procurar amigos, adiar consulta médica, não educar os filhos, não responder e-mails ou ter aquela conversa com o parceiro. Por falta de melhor referência, pessoas complicadas – desorganizadas e sem tempo – se passam por trabalhadores exemplares, como se fossem realmente essências; diferentes de você, que deu o maior duro para fazer aquele curso de sushi – bobagem de quem não tem lá muito o que fazer! – que coisa!
Idéias mais radicais - como o Movimento Simplicidade Voluntária- ganharam a mídia, principalmente por pregar o desapego, inclusive ao conforto – o que exige sacrifícios. Não é disso que estamos falando - deixe o ar no máximo, por favor!
Do que se trata, então? Basicamente de descomplicar a vida ao máximo. Quer tempo para viver melhor? Livre-se de tudo o que atrapalha a sua tranqüilidade. É a receita de Elaine St. James, escritora especialista em simplicidade. Segundo ela, pessoas muito estressadas se recusam a rever prioridades; uma vida complicada é a melhor maneira de adiar providências para achar tempo para o que dá prazer. (Auto-sabotagem?)
"Simplifique sua Vida: 100 Maneiras de Diminuir o Ritmo e Desfrutar das Coisas que São Realmente Importantes” (o primeiro dos vários de Elaine sobre o tema) é antigo -1999 – e continua entre os mais lidos. O que me parecia mais um manual de auto-ajuda acabou me ajudando a identificar o que vampiriza meu tempo e minha paz - eu mesma, ocasionalmente.
John Maeda, diretor da Rhode Island School of Design e outro guru da “descomplicação” publicou em 2007 “As dez Leis da Simplicidade”. Mesmo que não seja novidade, vale conhecer as reflexões sobre o que emperra a eficiência no trabalho - ou na vida. Ser (pelo menos só um pouco) mais simples parece a melhor forma de evitar conflitos.
Mesmo a rotina mais básica pode ser simplificada. Sair quinze minutos antes para evitar rush, fazer compras ou academia em outro horário, são as mais banais. Até a quantidade de publicações que recebemos pode ser fonte de estresse, ao gerar a “obrigação” de “ter que ler” uma montanha de revistas que vão se acumulando, resultando na sensação de incapacidade e desperdício. (Se não dá tempo, prá que assinar? Cancele logo!) E o Natal? Já reparou como complicamos um momento que deveria ser só alegria?
Viva e deixe viver! Para que pensar porque fulana não retornou a ligação ou se gostaram da festa que você deu o maior duro para organizar? Vão falar mal de qualquer modo, melhor gastar a energia algo prazeroso – aquela massagem, que tal? Não exigir demais de si mesmo e saber perdoar-se quando algo não sair exatamente como queria, também é fundamental.
Simplicidade pode ser um carro menor ou planejar a lista para ir ao supermercado menos vezes – depende de cada um. Os resultados de uma intervenção dessas, no entanto, são animadores. Como diria a Marina, das “Gatosas” (que estréia amanhã, 21h, no Cuíra!), Slow down; querida!
Foto: Ensina-me a viver, com Glória Menezes.

Bramasole: o que anseia pelo sol



Sob o sol, na madrugada
A única vantagem de estar eventualmente insone é poder passear por uma enormidade de canais, curtindo uma das minhas paixões. TV é tudo de bom, como diria a amiga Rejane (Barros, claro!). De um episódio da Discovery sobre Henrique VIII - ele foi um atleta, quem diria!- passo pelo fenômeno musical adolescente, o irritante Justin Bieber, o menudo da hora. Tenho ímpetos de dar uns coques no molequinho metido, que aprecia “mulheres mais velhas”; então tá, que falta faz um puxão de orelha ou uma escova, toma tenência, moleque!
Estou inquieta, são duas e meia da madrugada, preciso dormir e ainda tem essa dor de garganta chata... A próxima atração me acalma; vou assistir, mais uma vez, Sob o Sol da Toscana. Poucos filmes foram (e são) tão assistidos quanto o drama açucarado da escritora Frances Mayes (vivida na tela por Diane Lane) que resolve desembarcar de uma excursão pós-divórcio-traumático e arriscar-se na compra de uma casa em ruínas... em plena Toscana. O filme, de 2003, permanece como fonte inspiradora para muitos e mesmo nas incontáveis reprises, é um bom programa; apesar dos entendidos detestarem. Ninguém é perfeito.
Qual a razão de tamanho sucesso? As paisagens – encantadoras – da Toscana não são a única razão. O enredo trata de dar-se uma nova chance, pouco importa quantas. De ousar, de ter coragem de arriscar! Trata do bem querer, entre novos e velhos amigos e, em especial, de buscar antes de um novo amor, um lar - o que é muito mais que um teto... Viver numa casa onde a gente se reconheça e cada detalhe seja fruto de carinho é muito prazeroso - e nem é essencial que ela nos pertença há décadas. (A casa chama-se Brasole... Algo que “anseia pelo sol”.) Como os amores, existem casas que nos conquistam à primeira vista; outras, a gente vai dando um toque aqui, outro ali, muda isso e aquilo até que parece termos vivido lá a vida inteira. Casa é qualquer uma, lar tem a nossa cara.
O filme trata de gente - suas alegrias e tristezas, dúvidas e descobertas. Quem nunca sentiu um desinteresse desesperador pela própria vida? Aquela certeza de não pertencer mais a esse lugar e precisar sair, em busca de um novo porto? Mas quantos podem fazer isso?
Poder resumir a bagagem a algumas caixas com o mais valioso, livros, fotos, só as roupas que usamos de fato; isso sim é deixar para trás o peso morto, para seguir adiante mais leves, de fato. Nos filmes isso é fácil. Na tal da vida real, muito raramente. Somos fiéis depositários de um monte de coisas que recebem um valor muito maior do que possuem. Carregamos lotes de objetos adquiridos à custa de algum sacrifício, como largar tudo assim, de uma hora para outra? Frances sofreu um divórcio extorsivo para chegar à conclusão que podia viver sem a mobília ou tudo que julgava imprescindível. ( Para outros, bastaria esse trânsito, o lixo, a mesmice, a canalhice de alguns que se dizem procuradores dos nossos interesses. Bastaria a propaganda eleitoral. Cadê coragem?)
Numa outra madrugada, assisti “House Hunters International”, série que acompanha a saga de pessoas comuns que procuram um novo lar, em outro país. Um radialista saiu dos Estados Unidos em busca de uma casa na Toscana, depois de assistir diversas vezes ao filme, imaginando se teria coragem... Como trabalhava com as corridas, cujas atividades ficam suspensas durante cinco meses, resolveu que teria outro lar, na Itália. O melhor foi ver que esse não é um sonho tão impossível. Por 45 mil dólares (sim, dólares) arrematou uma casinha com vista espetacular, mas em estado calamitoso, numa pequena aldeia próximo de Abruzzo; mais em conta que a Toscana e bem perto dela. Acompanhou pessoalmente a reforma que consumiu mais vinte mil dólares e, ao final, já tinha uma porta esmaltada de vermelho e vasos de gerânios sob sua janela – com vista para um prado, onde no verão, estariam milhares de girassóis. Por cinco meses em cada ano, o sonho seria realidade.
Ai, ai... Confesso que tenho inveja de quem ousa, de quem tem tanta coragem assim... Tento me conformar, talvez nem precisassem ir tão longe...
A Toscana pode ser qualquer lugar, onde a gente se sinta feliz e em paz, para onde valha a pena voltar, consolo-me... Ou um filme bonito que me faz sonhar durante a madrugada em claro...

Antiga


Ela já nasceu antiga, diferente das amigas, capazes de fazê-la corar. Não quis ser bailarina, as pernas eram grossas e não levava jeito com movimentos sincronizados. Não, ela não seria bailarina. Nem aeromoça, naquela época, toda menina bonita mesmo, sonhava com a Varig. Nunca soube de uma que tenha conseguido, a que chegou mais perto foi a Lúcia, que fazia check-in em Val-de-Cães. Mas ela não era ousada o suficiente para ser aeromoça, despachar vôos noturnos ou apresentar jornais de TV, como arquitetavam as outras.
Jamais teve um sonho desses, comuns, ou se imaginou num consultório ou numa prancheta; também não pretendia ser atriz, isso não era lá coisa fácil, não naquela época. Modelos e manequins, ela só soube que existiam depois dos anos setenta - que foram loucos, muito loucos. Ela não sonhava com nada que as amigas aspiravam. Não seria atriz, nem médica, nem...
Cândida sonhava com o piano, dia e noite. Não fosse a reclamação do pai – De novo, Cândida? – tocaria até altas horas. Depois do almoço, era a sesta que, mesmo sem ninguém dormir, só acabava lá pelas quatro. Ela que aproveitasse, às sete da noite haveria o Repórter Esso, e esse, era sagrado.
Cândida queria ser pianista. Falava de boca cheia, Pi-a-nis-ta! Tamborilava a carteira durante o “recreio”, entre os dois toques da “campa”, enquanto os demais devoravam a “merenda”. Ninguém mais falava assim ou sonhava com pianos, ora, ora.
Só uma coisa mexia mais com a Cândida, e sentava-se bem ao lado, na terceira carteira da segunda fila. O Antonio José era a razão dos suspiros da bela e doce Cândida. No mais, um sobrado avarandado, de paredes cor-de-rosa, que tudo naqueles tempos tinha essa cor. Sala com mesa de jacarandá, pano de crochê e vaso de cristal, para trocar flores toda semana. Quarto de amplas janelas, cama de cerejeira entalhada, colcha de cetim - e o Antonio José em cima, claro. E no canto da sala, tchan-tchan-tchan-tchan... O piano! Haveria de ser um de cauda, desses que ficam abertos e se vê as cordas, lindo, lindo. Um sonho em sépia, como as fotos antigas.
E foi quase assim que as coisas aconteceram. Formou-se no Conservatório, com louvor; casaram-se na Basílica, tiveram três meninas... Cuidou de cada espirro, alimentou, debelou febres e aparou quedas, quase como havia sonhado; esposa e mãe, fazendo bolos, fritando batatas e bifes, amarrando marias-chiquinhas, enrolando brigadeiros, indo às reuniões do Lyons.
O piano... Bem, o Antonio José achou que não havia espaço para o piano, muito menos admitiu aulas, “no meio da sala”. Afinal, ela não precisava trabalhar; que cuidasse da casa, da família, determinou. Cândida viveu “o sonho” até mês passado, quando a caçula foi para São Paulo, fazer um desses cursos que nem sabia pronunciar o nome.
Ao chegar da hidro, encontrou duas malas repletas de roupas masculinas – novas e muito modernas. O Antonio José? Bem, num bilhete dizia que estava indo embora - com outra - para finalmente ser feliz. Aconselhava-a fazer alguma coisa “útil”, não sabia como ela vivia “sem fazer nada”...
Ela? Sei lá, acho que enlouqueceu. O “finalmente” atravessava-lhe a garganta... Dobrou as antigas roupas do marido, guardou-as nas malas novas, incluindo ceroulas de algodão e cintos de curvim dupla face. Colocou as novas sobre a cama de cerejeira que arrastou até o quintal, juntou a foto dele com o Rivelino, os álbuns completos das últimas oito copas, os discos dos Beatles e o Rolex, que ele só usava na festa da turma. Ateou fogo e ficou assistindo, tranquilamente.
O Antonio José? Foi morar com a outra. Ela? Está pensando em alguma coisa para fazer com a pensão, depois do divórcio. Viajar, por exemplo. E fazer aulas de dança de salão; nunca é tarde para dançar, as pernas grossas, sabe como é...