segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Antiga


Ela já nasceu antiga, diferente das amigas, capazes de fazê-la corar. Não quis ser bailarina, as pernas eram grossas e não levava jeito com movimentos sincronizados. Não, ela não seria bailarina. Nem aeromoça, naquela época, toda menina bonita mesmo, sonhava com a Varig. Nunca soube de uma que tenha conseguido, a que chegou mais perto foi a Lúcia, que fazia check-in em Val-de-Cães. Mas ela não era ousada o suficiente para ser aeromoça, despachar vôos noturnos ou apresentar jornais de TV, como arquitetavam as outras.
Jamais teve um sonho desses, comuns, ou se imaginou num consultório ou numa prancheta; também não pretendia ser atriz, isso não era lá coisa fácil, não naquela época. Modelos e manequins, ela só soube que existiam depois dos anos setenta - que foram loucos, muito loucos. Ela não sonhava com nada que as amigas aspiravam. Não seria atriz, nem médica, nem...
Cândida sonhava com o piano, dia e noite. Não fosse a reclamação do pai – De novo, Cândida? – tocaria até altas horas. Depois do almoço, era a sesta que, mesmo sem ninguém dormir, só acabava lá pelas quatro. Ela que aproveitasse, às sete da noite haveria o Repórter Esso, e esse, era sagrado.
Cândida queria ser pianista. Falava de boca cheia, Pi-a-nis-ta! Tamborilava a carteira durante o “recreio”, entre os dois toques da “campa”, enquanto os demais devoravam a “merenda”. Ninguém mais falava assim ou sonhava com pianos, ora, ora.
Só uma coisa mexia mais com a Cândida, e sentava-se bem ao lado, na terceira carteira da segunda fila. O Antonio José era a razão dos suspiros da bela e doce Cândida. No mais, um sobrado avarandado, de paredes cor-de-rosa, que tudo naqueles tempos tinha essa cor. Sala com mesa de jacarandá, pano de crochê e vaso de cristal, para trocar flores toda semana. Quarto de amplas janelas, cama de cerejeira entalhada, colcha de cetim - e o Antonio José em cima, claro. E no canto da sala, tchan-tchan-tchan-tchan... O piano! Haveria de ser um de cauda, desses que ficam abertos e se vê as cordas, lindo, lindo. Um sonho em sépia, como as fotos antigas.
E foi quase assim que as coisas aconteceram. Formou-se no Conservatório, com louvor; casaram-se na Basílica, tiveram três meninas... Cuidou de cada espirro, alimentou, debelou febres e aparou quedas, quase como havia sonhado; esposa e mãe, fazendo bolos, fritando batatas e bifes, amarrando marias-chiquinhas, enrolando brigadeiros, indo às reuniões do Lyons.
O piano... Bem, o Antonio José achou que não havia espaço para o piano, muito menos admitiu aulas, “no meio da sala”. Afinal, ela não precisava trabalhar; que cuidasse da casa, da família, determinou. Cândida viveu “o sonho” até mês passado, quando a caçula foi para São Paulo, fazer um desses cursos que nem sabia pronunciar o nome.
Ao chegar da hidro, encontrou duas malas repletas de roupas masculinas – novas e muito modernas. O Antonio José? Bem, num bilhete dizia que estava indo embora - com outra - para finalmente ser feliz. Aconselhava-a fazer alguma coisa “útil”, não sabia como ela vivia “sem fazer nada”...
Ela? Sei lá, acho que enlouqueceu. O “finalmente” atravessava-lhe a garganta... Dobrou as antigas roupas do marido, guardou-as nas malas novas, incluindo ceroulas de algodão e cintos de curvim dupla face. Colocou as novas sobre a cama de cerejeira que arrastou até o quintal, juntou a foto dele com o Rivelino, os álbuns completos das últimas oito copas, os discos dos Beatles e o Rolex, que ele só usava na festa da turma. Ateou fogo e ficou assistindo, tranquilamente.
O Antonio José? Foi morar com a outra. Ela? Está pensando em alguma coisa para fazer com a pensão, depois do divórcio. Viajar, por exemplo. E fazer aulas de dança de salão; nunca é tarde para dançar, as pernas grossas, sabe como é...

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