domingo, 7 de março de 2010

Liberdade e solidão


Era um dia quente, abafado como os últimos; mas já faz uns bons anos. Estava atrasada e resolvi almoçar num desses restaurantes orientais, com muita fritura e a certeza de sair cheirando a bife. Mas não havia outra opção, era isso ou perder parte da tarde.
Ela entrou, passos miúdos e semblante conhecido. Meu alarme soou. Quem era? Tenho essa dificuldade de conectar o nome à pessoa e pavor que me perguntem a queima roupa: ”Lembra de mim?”
-“Ôla?”, ela me cumprimentou assim, com esse “olá” anasalado, sem tradução específica, muito usado por quem quer personalizar a saudação. “Posso?”, perguntou já amesendada, como diria o Denis Cavalcanti.
-Claro, respondi sem ter outra opção, preocupada com o tempo que passava célere.
De supetão, perguntou como estava a Maria do Carmo, e se a Márcia ainda morava no sul. Percebi que conhecia a família, o que agravava meu esquecimento. “Adoro tuas crônicas.”, arrematou, mudando o rumo da prosa.
E se eu perguntasse pela família e ela fosse uma dessas pessoas que, sei lá como, não tem mais ninguém? Premida pela necessidade de entabular uma conversa qualquer, minha companheira de refeição falou sobre a viuvez e como a antiga casa (“Enorme, lembras?”.Claro que sim, menti.) havia se transformado num mausoléu, solitária e dispendiosa, pois os filhos, ah, esses não se encantam com casas dos pais.
Disse-me da solidão familiar, que havia piorado com a morte da Duquesa, a cadela de estimação. Até que decidiu vender tudo –tudo, mesmo – e mudar-se para um apartamento de três suítes transformado para dois quartos e poucos, pouquíssimos móveis. O carro ainda era o do falecido – que ela haveria de usar até que não mais dirigisse, pois essa era mais uma descoberta: carros são apenas um meio de locomoção.
Já havia esquecido compromissos, interessada nessa história de vida. A “senhora” não parecia ter mais vinte anos que eu, mas havia um abismo entre nós; como se morasse numa aldeia inatingível.
Tomei coragem e perguntei da solidão. Ela suspirou, como se ar doesse ao invadir-lhe os pulmões. E respondeu com um incompreensível “Depende.” De quem ?
“Ninguém se visita como antigamente. Há que se marcar hora e essas bobagens. Os filhos aparecem vez por outra, vão mais à casa das sogras do que das mães. O segredo de manter a casa cheia é se entender (muito bem) com as noras. Reparti as antiguidades, dei a cada uma o que mais gostavam; apliquei o dinheiro e vivo bem. Hoje, minha cozinha é pouco usada; faço refeições fora e não tenho louça para lavar ou compras urgentes. Plantas? Poucas, na varanda, onde sobrevivem às minhas longas viagens. Esse é o preço da liberdade, encerrou a conversa, sem esquecer de mandar lembranças à minha família.
Saí atrasada, fedendo a bife e depressiva. Fiz umas contas e cheguei à conclusão que em vinte anos, talvez fosse eu a preferir arranjos artificiais e um fogão ornamental, em nome da praticidade e da modernidade. Esqueci o encontro e nem transmiti as lembranças; para ser franca, ela não pronunciou um nome sequer, que me possibilitasse descobrir quem era.
Ontem, por falta de tempo, almocei num restaurante semelhante e vi algumas senhorinhas, cada uma em sua mesa e em seu mundo. Continuo gostando da minha casa com meus bichos, meu fogão trabalha à exaustão e não dei sinal de um dia adotar essas modas práticas de só comer na rua e levar “bolo caseiro” pra casa. Quanto mais demorar, melhor.
Pelo menos pra mim, liberdade é cuidar da família, das minhas plantas, mimar minhas gatas; poder cozinhar de vez em quando para quem amo e, quem sabe, arriscar uma receita da Ana Maria Braga. O mais, depois se resolve.

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